Por que dói tanto?...
Tenho me feito essa pergunta à um tempo já... por que dói
tanto?...
Dói ver a nossa história ser roubada de nossas vidas, dói
ver a menina branca cheia de “boa vontade” usar o espaço que sempre foi seu pra
contar a minha história do jeito que lhe convém, Porque dói um vídeo com
milhares de acessos pra ver essa menina rica falar de pobreza com um pote de “nutela”
na mão, por que dói ver meninos brancos “disfarçados” de negros entrando e
saindo dos shoppings com seu visual descolado e seus cabelinhos na régua sem
sequer serem vistos pelos seguranças que preferem ir atrás do pretinho que
tentou se vestir bem pra não ser notado?
Será que a minina branca com seus dreads artificiais comprados
no mesmo shopping quer só o “charme da cor” ou ela entende que esse lugar não à
pertence? Como deve se sentir uma pessoa que usa dreads e nunca foi xingada de
suja nem perseguida em supermercado? Pelo contrário é descolada e estilosa ...
É tão “bunitinho” a minina branca dançando funk que logo
vira cultura, na favela não, é putaria mesmo e todas merecem ser molestadas,
afinal estão rebolando...
Nos ridicularizam e vivem às nossas custas culturais, blues,
samba, rock e agora a “onda” é o funk, acho interessante ver as pessoas apreciando
arte e cultura negra, mas dói ver a cantora branca e rica ganhando dinheiro com
um disco que remete a cultura afro e aos pontos de candomblé, invocando os
orixás em seus palcos iluminados enquanto o nosso povo é assassinado e os
nossos terreiros cheios de povo preto e santo é incendiado e perseguido.
Pode parecer bizarro, mas não aprecio a sua narrativa, você
sentada no seu sofá, curtindo um friozinho que vem do ar condicionado com seu i
fone na mão falando de favela?! Desculpe, mas você não me representa, você não
sabe do que está falando e sinto muito, mas nesse caso a leitura não vai te
ajudar, isso é coisa de pele, sabe? Não, não sabe... só confio em quem fala com
conhecimento de causa e me perdoe, ser negro e favelado não é só dançar funk e
usar visual não, sabe? E no terreiro? Onde o seu crush “negão” toca atabaque e
você frequenta pra se sentir mais “descolada” tem invasão e incêndios
criminosos fruto do racismo religioso. Enquanto você faz suas poesias fictícias
pra falar de algo que não conhece os meninos estão fazendo rap pra existir e
avião pra sobreviver, não, aqui não tem escola de música com professores e técnicas
pra você “pegar o jeito” a caneta ocupa o lugar do martelo nas horas vagas e o
pedreiro capta a inspiração embaixo do toldo durante o intervalo do almoço. e o moleque de 12 anos não pode participar do projeto social porque tem que cuidar do irmão mais novo pra mãe solo poder trabalhar e sustentar os dois, quem sabe ano vem? se o governo não cortar as verbas das ongs pode ser que dê certo ele levar o caçula pra verem juntos a aula de flauta doce que o jovem universitário veio ministrar pra ter seu trabalho reconhecido e concluir seu tcc na favela e assim salvarem seus mundos, são muitos mundos na favela.. Quando
eu era criança e mal via a minha mãe que passava todos os dias trabalhando pra
sustentar três filhas e assim poder viver sua vida sem a violência de um
relacionamento abusivo me restavam os livros que recebíamos de doação, pois
é... hoje eu escrevo pra sobreviver, de alma, não de grana, é muito difícil gente
preta ganhar dinheiro contando as suas histórias, saca? Mas preciso falar ou
escrever sobre o que me toca, os livros que eu recebia de doação das “patroas”
me faziam sentir mais perto da minha mãe e por isso eu passava o dia lendo, não
podia sair muito pra brincar na rua pois minha avó que nos guardava até minha
mãe chegar do trabalho tinha medo que nos envolvêssemos com tráfico ou
traficantes...
É triste perceber o olhar cansado do pai trabalhador que não
serve de inspiração pro seu caçula que acha mais interessante a vida do
traficante que mora ao lado e acorda tarde mas mesmo assim tem grana, mulheres
e dinheiro. como se ensina sobre honestidade pra alguém que tem fome? Você pode
me dizer? Faz um vlog, gata.. Não estou aqui pra julgar ninguém, mas quero que fique
bem escuro que não me vejo em seus olhos, nem na sua fala, não acho justo que pessoas brancas que nunca sofreram o sofrerão
nenhum tipo de racismo venham falar por mim nem por meu filho preto de 14 anos
e favelado com muito orgulho, sim, muitas dores, muita luta e muito orgulho.. “eduquem seus filhos pra não serem racistas, porque estamos educando os
nossos pra resistir”
É que nós estamos segurando uma estrutura social tão
pesada que pode acabar nos esmagando.
Camila Rodrigues.
16/10/2020.